quinta-feira, 27 de fevereiro de 2014

Pecado Original ou Ancestral? Uma Breve Comparação




A desobediência primeira do homem, o Fruto
Daquela Árvore Proibida, cujo sabor letal
Trouxe a Morte ao Mundo, e toda nossa miséria
Com a perda do Éden, até um Homem maior
Nos restaurar, e uma vez mais recebermos o trono bendito,
Canta Ó, empírea Musa!
John Milton, Paraíso Perdido, Livro I

Embora Milton tenha escrito de forma mais eloquente do que eu, a música da humanidade é criação, queda e redenção - uma bela sinfonia repleta de ricas polifonias, repentinas modulações e dissonâncias dramáticas. Em algum ponto, uma melodia trágica embrenhou-se na partitura, mas no fim é sobrepujada e a música conclui com fanfarra triunfante. Embora a maioria dos cristãos concorde com esta imagem musical, grupos diferentes escreveriam o prelúdio de forma diferente. De onde exatamente a melodia trágica veio, quem a escreveu na partitura, e como ela afeta o resto da música? A resposta a estas perguntas influencia os atributos das partes individuais, assim como a direção de toda a narrativa musical.

Esta é nossa narrativa de trabalho como alicerce do Cristianismo: Adão e Eva foram criados em comunhão com Deus, perderam esta comunhão, e o resto da humanidade os seguiu. Desta narrativa emergem duas visões divergentes sobre o ser humano, duas antropologias. Embora todos os cristãos usem o termo "pecado original" para se referir ao estado da humanidade depois da Queda (Rom. 5:12-21; Cor. 15:22), muitos Cristãos Ortodoxos preferem o termo "pecado ancestral". Assim, por conveniência, utilizarei o termo pecado original para referir-me exclusivamente às articulações deste conceito feitas por Roma, Calvinistas e Luteranos, que ensinam que a humanidade herdou tanto os efeitos quanto a culpa do pecado de Adão. Em contraste, utilizarei o termo pecado ancestral, para denotar o ensino Cristão Ortodoxo de que a humanidade herdou apenas as consequências do pecado de Adão, e não sua culpa. Uma visão é ontológica, a outra é existencial.

A Igreja Católica Romana foi a primeira a articular a doutrina do pecado original como um estado de culpa herdada - por questão de brevidade, irei dar como inclusas as doutrinas protestantes sobre a Queda na minha discussão do pecado original. Primeiramente inspirados pela teologia reacionária de St. Agostinho de Hipona e solidificada mais tarde por concílios e teólogos, os católicos romanos trilharam um caminho marcadamente diferente dos católicos ortodoxos. Em 1546, o Concílio de Trento emitiu a primeira grande afirmação dogmática sobre o pecado original:

"Se qualquer um afirmar que a prevaricação de Adão feriu somente a ele, e não sua posteridade; e que a santidade e justiça, recebidas de Deus, as quais ele perdeu, apenas ele as teria perdido e nós não; e que ele, tendo sido conspurcado pelo pecado da desobediência transmitiu-nos apenas a morte, e as dores do corpo, mas não também o pecado, o qual é a morte da alma; seja quem tudo isto afirma anátema, pois contradiz o Apóstolo que diz; 'por um homem o pecado entrou no mundo, e pelo pecado a morte, e assim a morte passou a todos os homens, e no qual todos pecaram'." (Sessão V)

Quase quatro séculos mais tarde, o catecismo de Baltimore continua a definir o pecado como aquilo que "vem sobre nós desde nossos primeiros pais, e somos trazidos ao mundo com esta culpa em nossa alma" (P. 266). Com a publicação do Catecismo da Igreja Católica, a doutrina do pecado original ainda está presente, embora melhorada pela nova linguagem da perda da "santidade original", "natureza humana ferida pelo primeiro pecado" , "enfraqueceu-se" pela ignorância, sofrimento e morte e "inclinou-se ao pecado(416) - nada a que um teólogo católico ortodoxo objetasse fortemente. A ênfase mudou de uma rígida transferência de culpa para uma gentil perda de santidade e consequentemente  é uma evolução na doutrina. Embora a doutrina católico-romana do pecado original pareça ter sido rearticulada ao longo dos últimos cem anos e muitos fiéis não mais acreditam no ensino de que bebês nascem culpados pelo pecado, é claro na história da teologia do catolicismo romano que o pecado original inclui a imputação da culpa de Adão por sobre toda a humanidade.

Existem consequências notáveis da doutrina do pecado original. Se ela fosse verdade, implicaria que a natureza humana é má - não apenas relativamente, mas positivamente má. Não apenas carregaríamos a culpa de nossos primeiros pais em nossa alma, mas herdamos também uma ontologia degenerada e, portanto, uma inabilidade de fazer algo bom. A culpa de Adão teria transformado a própria natureza humana em algo sujo, posicionado a natureza em oposição à Graça. Se a natureza humana fosse inerentemente depravada, qual o impacto disto na Encarnação de Cristo? Como poderia Deus ter se envolto na carne humana? Teria Cristo herdado a culpa de Adão e sua natureza degenerada? Claramente não, e é assim que teologia ruim gera teologia ruim.

Teologia Heterodoxa #1: A doutrina da imaculada conceição propagada pelo catolicismo romano convenientemente evita o problema de Deus assumir uma natureza humana degenerada alegando que a natureza da Mãe de Deus estava livre da mancha do pecado original transmitida através da semente corrupta de um pai terreno. Isto seria uma consequência lógica da doutrina do pecado original. A Igreja Católica Ortodoxa crê que Maria é Cheia de Graça desde o nascimento, mas não no sentido de que precisava ser "consertada" antes da Anunciação para explicar nossa Cristologia, porque a Igreja nunca pregou a doutrina do pecado original desde seu início.

Teologia Heterodoxa #2: A doutrina da expiação por substituição penal provém das mesmas categorias judiciárias criadas pela doutrina do pecado original na teologia ocidental. O pecado original pertence a um paradigma legal no qual a ira de Deus contra a humanidade, pela culpa do pecado de Adão que está em nós, tem que ser aplacada para que sejamos salvos do fogo eterno. O amor e justiça de Deus, porém, não podem ser separados um do outro porque nossa relação com Deus é baseada na liberdade, não na necessidade. Embora a expiação de Cristo certamente é um conceito ortodoxo, a salvação não ocorre apenas através do ato de perdão de Deus ou de um plano de justiça legalista. A salvação só ocorre através de uma destruição gradual do demônio e de nossas paixões, "trabalhando vossa salvação com tremor e temor" (Fil. 2:12).

Teologia Heterodoxa #3: A doutrina do limbo também contorna o problema do pecado original na teologia católico-romana. Um conceito um tanto sutil, "a perda da justiça original" ainda resultaria na separação de Deus e em merecermos uma punição. Assim, mesmo que tecnicamente não recebam a culpa original de Adão, os bebês não-batizados que morrem seriam relegados a uma eternidade no limbo, o que funcionalmente implica no entendimento tradicional católico-romano de pecado original. Como vemos, são tantos contornos que esta doutrina morre soterrada por tantos casos de exceção. O que diferencia o golfo entre o céu e o inferno para cada pessoa, porém, é acumulação individual, e não herdada, de perda de justificação. De toda forma, quanto mais decidimos especular sobre detalhes intricados da salvação e da perdição, mais doutrinas temos que usar para apoiar nossas teorias. E a graça de Deus não pode ser medida por balanças.

A imagem que o catolicismo ortodoxo tem da humanidade caída é bem menos sombria do que a do catolicismo romano. Embora a Igreja Ortodoxa ensine que a humanidade está ferida pelo pecado, nossa degeneração não é total, consumada ou inerente à natureza humana - nós retemos nossa razão e livre-arbítrio (Imago Dei). As consequências pessoais do desvio moral são a morte espiritual e a morte física, mas as consequências para a humanidade são a morte física, a doença e o trabalho dificultoso. A morte é consequência da quebra de comunhão com Deus, não um julgamento, porque as coisas criadas não conseguem existir sem esta comunhão. Como Adão e Eva estão ligados à Humanidade, e a Humanidade está ligada à Natureza, todo o mundo natural está sujeito a mesma morte e degeneração. Herdamos um Cosmos no qual a doença e a morte reinam. Como disse o Metropolita Kallistos Ware, "mesmo não tendo herdado a culpa dos outros, estamos de alguma forma sempre envolvidos no problema".

A Queda de Adão e Eva também criou a inclinação da humanidade para nos distanciarmos de Deus. Embora Adão e Eva não possuíssem uma santidade madura, eles possuíam inocência, a qual foi perdida depois da Queda. Os teólogos da Igreja falam da corrupção da natureza humana que resulta da perda da Graça de Deus que habitava dentro de nós - e nós humanos pecamos porque estamos voluntariamente subjugados pelo poder da morte e suas consequências, ao invés da Graça protetora de Deus.

De acordo com S. Máximos, o Confessor, o problema é que nossa vontade natural tornou-se uma vontade gnômica, significando que agora podemos balançar entre duas escolhas. A vontade gnômica é capacidade de escolher que tipo de coisa vamos querer, inclusive podendo escolher o pecado contra nossa própria natureza. Depois de colhermos a culpa em nossas almas, a natureza da pessoa não está tão deformada que não possa ser reconhecida. A corrupção da natureza humana pelo pecado é uma doença. Uma mulher com câncer está doente, mas ela mesma não se torna fundamentalmente ruim. Um menino com pernas paralisadas não pode andar, mas não é menos humanos por isso do que alguém com pernas funcionais. Da mesma forma, o pecado não é uma mácula na natureza humana, mas corrupção que acontece dentro do indivíduo.

Desenvolvendo a partir da teologia ortodoxa clássica, o Patriarca Meléssios Pegas (1549-1601), explica desta forma: embora as "energias" da pessoa tenham sido degeneradas pelo pecado, a "essência" não foi. Assim como as distinções entre essência e energia são vitais para o entendimento ortodoxo de Deus, elas também podem ajudar a explicar a inclinação humana para o pecado sem a herança da culpa dos nossos primeiros pais. O pecado não é o que somos, é o que fazemos.

Embora a Igreja Católica Ortodoxa rejeite  a articulação ocidental do pecado original, ainda assim precisamos "nascer de novo". Depois que uma pessoa peca, o golfo entre ela e Deus apenas cresce. Cada vez que ela colhe culpa de sua alma, a pessoa se afasta ainda mais de Deus, ferindo-se no processo. O batismo é o início de uma jornada de uma vida inteira no arrependimento na Igreja, e na qual morremos para a lei da morte para vivermos de acordo com a lei da vida; nossos pecados passados, presentes e futuros são lavados, não somos mais escravos dos efeitos do pecado, e somos reinstalados na Graça de Deus e no potencial para a imortalidade em Cristo. Embora os bebês não sejam eles mesmos culpados do pecado original, eles recebem todos os benefícios do batismo porque haviam herdado tanto a mortalidade quanto a vontade fraca. A cruz não é uma satisfação expiativa, ou um ato de substituição penal, mas ao invés, é Christus Victor - o Cristo Vitorioso que pisou a morte e o pecado com seu sacrifício voluntário e expiativo. Deus assumiu a carne de Suas criaturas e nos permitiu participar na natureza divina (2 Pe. 1:4), restaurando, assim, a  Criação para que ela se torne o que ela foi feita para ser.

A doutrina do pecado original como articulada pela Igreja Católica Romana e depois pelos protestantes não é simplesmente um caso de semântica, mas fruto de uma antropologia equivocada, resultante de erros e mal-entendidos teológicos. Esta doutrina tem vastas implicações para a antropologia - pecado, graça, livre-arbítrio, batismo e teósis. Como compreendemos os efeitos da Queda afeta diretamente nossa soteriologia. A posição ortodoxa sobre o pecado original, chamado por nós de pecado ancestral, é que a humanidade herdou apenas as consequências do pecado de Adão e Eva, e não a culpa deles. O batismo restaura a Graça de Deus nos humanos de forma que tenhamos a capacidade de superar o pecado e a morte, concluindo a longa canção da humanidade.

Alison Sailer Bennet é aluna de Terapia Musical e Filosofia na Temple University na Filadélfia. Ela e seu marido, Jamey, freqüentam a Igreja Ortodoxa Russa São Miguel Arcanjo e operam o site OrthodoxPhilly.com

Www.orthodoxyandheterodoxy.org

O Inferno Testemunha a Glória do Homem



O Inferno Testemunha a Glória do Homem 


Leitor Fabio L. Leite 


Quando alguém critica a ideia de inferno, costuma alegar isto: que penas eternas e sofrimento sem fim são rigorosamente desproporcionais a qualquer erro que qualquer ser humano pudesse cometer. Que Deus age como um raivoso descontrolado batendo em criaturas que mal têm condições de entender o que fizeram e de que forma aquela sova eterna se relaciona com o que fizeram. Este raciocínio pode ser descrito assim: 



a) Justiça consiste na proporção entre a penalidade e  o crime e o criminoso; 

b) O inferno é infinitamente maior que qualquer crime e infinitamente maior que qualquer ser humano; 

c) Portanto o inferno é injusto. 




É a premissa (b) que creio estar errada. Não somos uma poeira ao vento sendo desproporcionalmente punidos. O ser humano é uma criatura cósmica. Mais do que cósmica, é uma criatura que é imagem e semelhança da própria fonte de existência do cosmos. Se você joga um cachorro em uma fornalha por ele ter roído seu chinelo, você é cruel e injusto. Se uma estrela implode ou se duas estrelas se chocam, o inferno de calor, luz e até distorções do espaço que se seguem são tanto naturais quanto proporcionais. Quando um ser humano peca contra si mesmo ou contra outros seres humanos, ele não é como um cachorro, pequeno e ignorante, fazendo xixi na Mona Lisa, e então perseguido por um supervisor cruel. Ele é como essas estrelas. Somos tão enormes quanto a perenidade e nossos crimes contra nós mesmos e o próximo são do tamanho da imortalidade. 



São Nicodemos do Monte Atos diz: 




"Deus criou primeiro o mundo dos anjos, depois o mundo visível. Depois de tudo, ele criou o homem, com uma alma invisível e um corpo visível. Criou-o como o universo, não um pequeno cosmo dentro de um grande cosmo, como disse Demócrito e outros filósofos opinaram, chamando o ente, o homem, de um microcosmo, limitando-o à perfeição do mundo visível. Não! Deus fez o homem, grande cosmo pela multidão de forças que contém, especialmente a razão intuitiva e discursiva, e a vontade, às quais o mundo que é perseguido pelos sentidos não possui." 




São Nektários de Egina escreveu: 



"Grande é o homem espiritual, o homem interior, o espírito ou alma que foi criado à imagem de nosso Deus criador. Ele, que não pode ser contido pelo universo, habita microscopicamente no coração do homem. Isso soa estranho, porém é verdade. O modo é místico, mas sua revelação é manifesta pelos efeitos. Deus é infinito e o universo está na palma de suas mãos. O homem é um grão de poeira e, ainda assim, ergue-se acima do cosmos, acima dos céus, e vê com seus olhos mentais a grandeza da criação. Examina e pesquisa o universo com seu poder racional. Descobre leis que governam o universo. Mede as mais vastas distâncias e dimensões dos corpos celestiais. Conhece sua densidade, solidez e quantidade de substâncias que compõem seus corpos no geral, a natureza e as forças repulsivas e atrativas dos enormes gigantes do firmamento celestial. Iluminado pela criação divina, seu intelecto busca o criador do universo. Estuda o caráter do criador divino e faz asserções sobre seus atributos. "




São Justino Popovich escreveu o seguinte: 



Os homens condenaram Deus à morte; com Sua Ressurreição Ele os condenou à imortalidade. Em troca dos golpes que recebeu, Ele nos abraçou; pelos insultos, nos deu bençãos; pela morte, imortalidade. Nunca o homem mostrou mais ódio a Deus do que quando O crucificaram; e Deus nunca mostrou mais amor à humanidade do que quando ressuscitou.  A Humanidade queria Deus morto, mas Deus, com sua Ressurreição, queria a Humanidade viva, o Deus crucificado ressurrecto no terceiro dia, depois de ter destruído a morte. Não há mais morte. A imortalidade cerca o homem e todo o mundo. 




Em toda sua terrível grandiosidade e infinitude, as penas eternas são um efeito proporcional e natural à auto-destruição de um ser magnificamente maior que todo o universo, um ser que em si pode conter todo o cosmos e a imagem do próprio Criador. O inferno é a implosão voluntária do homem.